Mário, Íntimo
e Pessoal
A vida do mentor do modernismo brasileiro
sempre foi cercada de mistério. A correspondência
com o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa, uma espécie
de pai postiço do escritor, abre caminho para a compreensão
das angústias do homem e, em consequência, de
sua obra

Em uma das incontáveis cartas que escreveu,
Mário de Andrade relatou a Manuel Bandeira: "O
caso típico da minha afetividade foi a morte de meu
mano mais moço, que me levou quase pra morte também.
(...) os médicos chegaram a não dar mais nada
por mim. Não comia, não dormia. Foi o bom senso
de um tio, espécie de neurastênico de profissão,
que me salvou. Pegou em mim, me levou pra fazenda dele, me
deixou lá sozinho. (...) Voltei poeta da fazenda".
Referindo-se ao episódio da morte de seu irmão
Renato, em decorrência de uma cabeçada em um
jogo de futebol em 1913, quando este contava apenas 14 anos,
o grande mentor do modernismo revelava a importância
do fazendeiro Pio Lourenço Corrêa — o "tio"
da carta — na sua formação. Uma formação
que, além dos aspectos literários e teóricos,
foi forjada também nas angústias e neuroses
do autor de Macunaíma.
Boa parte dessa faceta pessoal de Mário
de Andrade pode ser vislumbrada em Pio & Mário
— Diálogo da Vida Inteira, que chega às
livrarias neste mês. O volume, ilustrado por dezenas
de fotos, reúne 105 cartas de Pio e 84 de Mário,
escritas entre 1917 a 1945. É a mais longa troca de
correspondência do escritor de que se tem notícia,
começando quando ele era ainda um desconhecido e indo
até cinco dias antes de sua morte. Discreto, Mário
falava pouco da vida íntima. Embora não seja
pródiga em desabafos, a correspondência com Pio
é das mais pessoais entre todas as que Mário
mantinha. Bem esmiuçada, pode abrir caminho para a
compreensão das angústias do escritor, estudo
que seria importantíssimo para a melhor compreensão
de sua obra.
|
Casa
da Chácara Sapucaia
Clique
na imagem para amplia-la
|
Mas quem era Pio? Nascido em 1875, tinha 18
anos a mais que Mário e, embora este o chamasse de
"tio", Pio era, na realidade, casado com sua prima
Zulmira de Moraes Rocha. O casal era proprietário da
chácara Sapucaia, em Araraquara, no interior de São
Paulo, onde o escritor se hospedava com frequência.
Foi lá que, deitado em uma rede durante uma semana
de 1927, Mário escreveria Macunaíma. "É
a minha Pasárgada", gostava de dizer.
À diferença dos outros correspondentes
de Mário, Pio não era artista, mas teve um papel
fundamental na trajetória do escritor por conta dessa
dimensão afetiva. Embora a correspondência seja
pontuada por discussões intelectuais (Pio manifesta
restrições, por exemplo, a Amar, Verbo Intransitivo
e a Macunaíma), esse não era, evidentemente,
o ponto principal da relação. Quem o diz com
clareza é Mário. Numa carta datada de 11 de
maio de 1931, ele escreve a respeito das divergências:
"Às minhas loucuras, fantasias, curiosidades,
a sua simplicidade sistematizada de ser deu maior paciência,
mais precisão de fortificarem-se no estudo; à
minha sensibilidade o senhor e sua vida trouxe novos lados,
desconhecidos antes, por onde ela se experimentasse e enriquecesse;
e finalmente à riqueza milionária das minhas
fraquezas veio a sua belíssima e tão nobre atitude
moral por freios".
Com essa "nobre atitude moral" a
colocar freios, Pio foi uma espécie de pai postiço
de Mário, cuja relação com o pai verdadeiro,
o jornalista Carlos Augusto de Andrade, sempre foi conturbada.
Um dos fundadores do primeiro vespertino da capital paulista,
a Folha da Tarde, Carlos seria sempre retratado como figura
autoritária na obra do filho escritor — como
no poema A Escrivaninha (1922) e no conto O Peru de Natal
(1938-1942).
Não eram poucas as angústias
familiares de Mário. Espécie de caçula
indesejado, "meio amulatado e feio", como dizia,
conviveu na infância com a predileção
da família por Renato, o irmão "bonito
e loiro". Talvez por isso a morte precoce e trágica
do menino tenha devastado tanto Mário, a ponto de,
como já vimos relatado pelo próprio escritor,
ter-se tornado um divisor de águas. Pio estava lá,
mas os acontecimentos deixariam marcas em Mário, sobretudo
um tremor nas mãos que o impediria de ser concertista.
Ao componente racial, motivo de um complexo
que acompanharia o escritor ao longo da vida, somaram-se questões
de classe. À diferença de Oswald de Andrade,
por exemplo, o "homem sem profissão" que
assumiria a vanguarda literária do início do
século 20 financiado pela fortuna pessoal, Mário
foi o protótipo do que o sociólogo Sergio Miceli
chamou de o "primo pobre" do modernismo brasileiro.
Nascido na capital paulista em 1893 e formado no Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, Mário
teria de trabalhar a vida inteira, levando uma vida modesta
de professor.
Com seu "complexo de inferioridade orgulhosíssimo",
como escreveu em certa ocasião, Mário também
se tornaria um homem metódico e cioso de sua memória.
Desde 1923, ele já catalogava todos os seus documentos,
e hoje seus milhares de cartas e fichas de leitura estão
devidamente guardados no Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB) da Universidade de São Paulo (USP). No artigo
Fazer a História, de 1944, ele escreveu: "Tudo
será posto a lume um dia, por alguém que se
disponha a realmente fazer a História. E imediato,
tanto correspondências como jornais e demais documentos
não opinarão como nós, mas provarão
a verdade".
"BONECA DE PICHE"
A despeito de tamanho cuidado de Mário,
ainda existem vários pontos obscuros em sua biografia.
O principal — e mais polêmico de todos —
diz respeito à suposta homossexualidade do escritor.
O tema foi levantado pela primeira vez pelo jornalista e escritor
Moacir Werneck de Castro em 1989, no livro Mário de
Andrade: Exílio no Rio, em que narra sua convivência
com o poeta entre os anos 1938 e 1940, quando Mário
lecionou na capital fluminense. "Na raiz do drama existencial
de Mário de Andrade jaz a angústia da sexualidade
reprimida e transformada em difusa pan-sexualidade",
escreveu.
Em 1998, foi a vez da escritora Rachel de
Queiroz, que, em Tantos Anos, sua autobiografia, afirmou que
Mário teria sido mais feliz se tivesse assumido a homossexualidade.
Entretanto, o que se falou sobre o assunto se esgota praticamente
aí. Há até hoje um cordão de isolamento
em torno do assunto entre seus herdeiros paulistas, e há
quem diga — principalmente em universidades de outros
estados — que existe uma parte da correspondência
de Mário que segue sob censura na Universidade de São
Paulo, onde está baseada.
Longe de pertencer ao reino da fofoca, o tema
é fundamental para entender a obra de Mário
e algumas de suas relações pessoais mais importantes
— como, por exemplo, a amizade entre o escritor e a
pintora Anita Malfatti. Pelas cartas que ambos trocaram, pode-se
inferir que a artista alimentou um amor platônico por
Mário, ao qual ele nunca correspondeu. O estudo do
tema é também fundamental para entender uma
questão central do modernismo, o rompimento entre Mário
e Oswald. Em artigo sobre o assunto, o jornalista Humberto
Werneck conta como o autor de Serafim Ponte Grande gostava
de fazer piadas venenosas sobre a suposta homossexualidade
de Mário. Oswald chegou a escrever, por exemplo, que
de costas Mário se parecia muito com Oscar Wilde, numa
alusão ao escritor inglês que enfrentou um doloroso
processo judicial por causa da orientação sexual.
|
Pio
Lourenço Corrêa e Zulmira de Moraes Rocha
Clique
na imagem para amplia-la
|
Em tom de brincadeira, Oswald também
gostava de assinar artigos com o codinome Cabo Machado, referência
a um personagem de um poema de Mário: "Cabo Machado
é cor de jambo,/ (...) Cabo Machado é moço
bem bonito./ (...) Cabo Machado é doce que nem mel
(...)". De acordo com Mário da Silva Brito, o
historiador pioneiro do modernismo também citado no
artigo de Humberto Werneck, o rompimento definitivo pode ter
ocorrido por causa de um texto escrito por Oswald em 1929,
com o título Boneca de Piche — alusão
à suposta homossexualidade e à cor da pele do
escritor.
Naquela mesma carta endereçada a Pio
no dia 11 de maio de 1931, Mário escreve mais adiante:
"Estava carecendo deste desabafo e me sinto feliz agora.
Desabafo saído com toda a espontaneidade e que teve
a enorme utilidade de me botar bem no meu lugar". Quem
sabe a divulgação da correspondência com
Pio Lourenço, revelando "desabafos" como
aquele, não ajude a chegar a uma "verdade"
mais completa sobre Mário, como ele queria. Tabus infundados
têm atrapalhado as pesquisas sobre a biografia de Mário
de Andrade. Que a correspondência com o "tio Pio"
ajude a colocá-los por terra. A moderna teoria literária
prega que só o entendimento do homem, em sua inteireza,
pode ajudar a compreender e iluminar a obra do escritor.
|
Clique
na imagem para amplia-la
|
O LIVRO, Pio &
Mário — Diálogo da Vida Inteira. Edições
Sesc SP/Ouro Sobre Azul, 424 págs., R$ 96.
LEIA
TAMBÉM, Obra Imatura, de Mário de Andrade. Agir,
224 págs., R$ 49,90.
Fontes:
O jornalista João Pombo Barile e a Revista Bravo
|