O crítico de cinema Leon Cakoff morreu aos 63 anos,
seis dias antes do início da 35ª Mostra
Internacional de Cinema em São Paulo criada por ele.
Leon
Cakoff é um herói da cinefilia. Foi o
criador da Mostra, evento
que tem alimentado o repertório de cinéfilos
paulistanos e visitantes durante os últimos 34 anos.
Abbas Kiarostami, Manoel de Oliveira, Amos Gitai, Theo Angelopoulos,
Alejandro Agresti, Alexander Sokurov, Béla Tarr...
são apenas alguns dos diversos diretores cuja obra
Cakoff nos apresentou desde que a Mostra começou,
na sala de cinema do Masp, em 1977.
Leon Cakoff
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"Merece uma estátua na cidade
por tudo que fez pela cultura de SP. Viva Cakoff! Que figura
extraordinária!"
Mostra
do quê? De cinema, claro. E internacional,
ainda por cima. Mas podem chamar só de Mostra mesmo. É como
o evento é conhecido por todos que o acompanham, é como
ficou gravado por ser "o" evento cinematográfico
de todos os anos em outubro, por fazer com que muitos tirem
férias de seus trabalhos para enfrentar as filas.
Criar
não quer dizer apenas idealizar e realizar
nesse caso. Quer dizer também lutar contra a censura
(principalmente a do regime militar), contra a lentidão
da alfândega, o despreparo do público, pouco
habituado a ver cinematografias distantes (público
que já foi pequenino, agora é grande), os problemas
do dia a dia que qualquer festival cinematográfico
enfrenta, a antipatia de muitos, a inveja de outros, suas
próprias tensões, enfim, todo um desafio diário,
um leão por dia a ser enfrentado e dominado. E também
um desafio anual, para nosso prazer.
Leon
Cakoff virou empreendedor. Como todo evento que faz sucesso,
ou você o encara de frente e torna-se um empreendedor
desse evento, fazendo com que cresça e renove suas
forças para não ser ultrapassado, ou você procura
viver na semi-clandestinidade, fiel ao princípio (e
não aos princípios) e arca com o prejuízo,
incluindo o maior deles: o de ter verdadeiros tesouros sendo
apreciados por alguns poucos.
A ditadura chegou
a interromper o festival após a exibição
de “O Estado das Coisas”, de Wim Wenders,
em 1984.
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Cakoff
escolheu o lado mais democrático e difícil.
Esse lado empreendedor fez com que aumentasse a antipatia
por ele em alguns círculos. Bobagem, claro, mas o
fato é que não sabemos muito bem como lidar
com pessoas que são bem sucedidas e trabalham muito
num país que ainda beira a miserabilidade e que inspira
o oba-oba carnavalesco.
O crítico e jornalista tinha sempre muitas histórias
para contar, em livros sobre a mostra ou sobre o amor pelos
filmes, nos pequenos jornais da mostra que circulavam até pouco
tempo, em inúmeras entrevistas e nos produtos derivados
de sua marca, a Mostra (sessões na TV, lançamentos
em cinema e DVD, livros).
Roads and Trees - Abbas
Kiarostami
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Numa
das edições do Jornal da Mostra, sob
o título "O eterno humor zombeteiro do mestre
Buñuel - Parte 2", a história que Cakoff
conta no meio de um texto é sensacional (tal texto
também foi publicado no jornal Valor Econômico,
em 2003). Estava ele na companhia do grande diretor espanhol
Luis Buñuel, andando pela Croisette durante o Festival
de Cannes de 1971. Como sua narrativa é saborosa,
melhor deixar o leitor com suas próprias palavras:
"É quando avistamos um vulto alto de mulher,
sozinha, vindo em nossa direção. Não
há mais ninguém andando por aquela hora da
manhã. Mais um pouco e reconhecemos a figura que se
aproxima: Glenda Jackson!
O nosso
silêncio fica ainda mais tenso. Cruzamos com
Glenda, abrimos caminho, Buñuel de um lado, eu do
outro, ela pelo meio, sem nenhum sinal de reconhecimento
da sua parte. O silêncio continua por mais uma boa
distância até que Buñuel não se
contém, me segura forte pelo braço e para para
soltar a sua máxima lapidar:
'Que és fea, és...
Pero me habla al carajo...'"
Um personagem de Fellini
Uma outra
história fascinante é narrada em
um livro cheio delas. Cakoff conta que visitou Fellini durante
uma filmagem na Cinecittá, o lendário estúdio
italiano. Uma vez lá, acabou participando como figurante
de "Ginger e Fred". Pode ser visto na plateia do
programa de TV para o qual os personagens do título
dançam. Tornou-se, por dois dias, um personagem felliniano.
Mas é na realização das várias
edições da Mostra que aconteceram o maior número
de relatos curiosos ou emblemáticos de sua luta pelo
cinema autoral e pelo exercício da cinefilia. Como
quando se separou do MASP, depois de sete anos de parceria,
e teve que providenciar a edição de 1984 num
escritório improvisado na prefeitura, por intermédio
e gentileza de Gianfrancesco Guarnieri, então Secretário
Municipal de Cultura.
Nesse
mesmo ano conseguiu, por meio da lábia de um
experiente advogado, o fim da censura prévia dos filmes
que seriam exibidos. Poucos dias depois seu mandado de segurança
foi cassado. A Mostra foi interrompida por quatro dias até que
os censores vissem trechos de todos os filmes que haviam
chegado. Tais acontecimentos - e muitos outros - são
contados pelo próprio Cakoff no delicioso livro "Cinema
sem fim: A história da Mostra - 30 anos" (Imprensa
Oficial).
Como
programador, curador, distribuidor e exibidor, sem esquecer
seu lado cinéfilo, Cakoff sempre conservou
o pensamento rápido de um jornalista. Ao ser perguntado
por Antonio Abujamra, no programa "Provocações",
se ele era um escravo da imagem, respondeu certeiro: "não,
pelo contrário, a imagem me liberta".
Envolvia-se
em polêmicas bobas como quando reclamou
do desprezo dos críticos brasileiros pelos filmes
de Claude Lelouch exibidos na edição de 2007
(desprezo que, por sinal, acompanha a carreira desse diretor
desde o início). Mas envolvia-se nelas porque sua
paixão desmedida pelo cinema fazia com que lutasse
por aqueles que considerava injustiçados. E porque
em algum momento parecia esquecer que em um evento com mais
de 300 filmes, quem consegue ver 1/3 deles é mágico
ou não precisa de sono.
O melhor
presente que podemos lhe dar, para que descanse em paz, é trabalharmos todos - críticos, jornalistas,
espectadores casuais e cinéfilos, sem esquecer dos
funcionários que trabalham por seus intentos - para
que a Mostra continue bombando e alimentando nossos corações
e mentes dessa arte tão bela e sempre tão ameaçada.
Leon
Cakoff plantou essa semente com tamanhos poderes que não nos parece possível vê-la enfraquecida.
Em algum lugar do cosmos, ele estará vibrando com
os filmes exibidos, refletindo conosco os rumos do cinema.
Leon
CAKOFF (Brazil / Sao Paulo International Film Festival President)
Active as a film critic, director and producer,
and also as president of the Sao Paulo International Film
Festival
which he founded in 1977 while programming director of the
Museum of Art of Sao Paulo. Also established a cinema chain
that screens both major and art films. Author and editor
of several books on film directors including Aleksandr SOKUROV,
OZU Yasujiro, Abbas KIAROSTAMI and Manoel de OLIVEIRA. Director
of short film “Come Back Always, Abbas,” which
screened at the Venice Film Festival in 1999. Apart from “Welcome
to Sao Paolo,” he also produced the 2005 feature film
project “Invisible World” that includes Manoel
de OLIVEIRA 's short film “From Visible to Invisible,” which
screened at this year's Venice Film Festival.