Quando
foi lançado, no primeiro trimestre de 1959, o LP Chega
de Saudade de João Gilberto provocou a mais completa
reviravolta na história da música popular brasileira.
João, que faz 80 anos dia 10 de junho, já era
o que havia de mais espantoso com dois discos singles (de
78 rotações) gravados no ano anterior. As quatro
novas canções haviam virado a cabeça
de jovens inclinados, mas ainda não decididos, a seguir
a carreira de músico.
Eram
Chega de Saudade, Bim Bom, Desafinado e Ho-ba-la-lá, e entre os jovens estavam
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento,
Edu Lobo, Francis Hime e outros mais que formariam a nata
de compositores. A música de João os fez determinados.
Nessas gravações, os dogmas de uma nova forma
de canção brasileira estavam explícitos
em elementos fundamentais, o ritmo, a harmonia, a batida
de violão e a maneira de cantar.
João
Gilberto
O primeiro vinil de João revelou que a nova forma
poderia ser instaurada para muito além das quatro
canções revolucionárias. João
demonstrou que sambas do passado entravam na dança
de sua revolução musical.
Os dois
sambas de Ary Barroso, Morena Boca de Ouro e É Luxo
Só,
o de Dorival Caymmi, Rosa Morena e até um clássico
de seu ídolo Orlando Silva, Aos Pés da
Cruz, de Marino Pinto e Zé Gonçalves,
também
passavam a ser uma coisa nova na concepção
de João Gilberto.
Era uma
outra bossa que nem Ary nem Caymmi nem Orlando sonhavam
poder existir. João Gilberto demonstrou
que era uma nova bossa. Ficou nítido que a bossa
nova, expressão aplicada por Tom Jobim para defini-lo
no texto da contracapa, não era um gênero.
Era uma forma leve extensível a qualquer canção
brasileira.
Esse primeiro LP de João Gilberto dura 22 minutos
e 35 segundos definindo outra marca inédita, a economia,
a depuração do supérfluo. Na condução
dos arranjos de Tom Jobim o guia era o violão de
João Gilberto. Espremendo a essência de cada
canção, João concentrava a fluidez
rítmica e melódica; penetrando na sua construção
original, introduzia com Tom uma harmonia de acordes invertidos
executados em bloco. Sem perda do caráter brasileiro,
aquela música alcançava um contexto universal.
O amor, o sorriso e a flor
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A contracapa do segundo LP, gravado em
pouco mais de uma semana no primeiro semestre de 1960,
trazia uma novidade
abaixo da apresentação, também de
Tom Jobim: o texto das 12 canções propiciando
que se ouvisse cada uma delas lendo a sua letra, o que
passou a ser característica de discos brasileiros.
O repertório reunia canções essenciais
da bossa nova, uma obra-prima de Carlinhos Lyra, Se É Tarde
me Perdoa, outra de Tom, Corcovado, uma terceira de Tom
e Newton Mendonça, Meditação, com
o verso que deu título ao disco, "o amor, o
sorriso e a flor", e o estigma do bom humor na
bossa nova.
O Pato
do ilustre desconhecido Jayme Silva, simbolizando a
ligação de João com antigos conjuntos
vocais. Na primeira faixa estava o mais convincente modelo
de integração texto/melodia da música
brasileira, o Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim
e Newton Mendonça, possivelmente a síntese
da bossa nova nos fundamentais elementos de letra, melodia,
ritmo e harmonia. A interpretação de João é direta
e enxuta com um final seco após 1 minuto e 35 segundos
de perfeição.
Ao
contrário do segundo, o terceiro LP foi concluído
a duras penas após 5 meses e em duas fases, a primeira
com a participação do conjunto do organista
Walter Wanderley, um músico excepcional, e a segunda
com orquestra sob regência de Tom Jobim que também
fez os arranjos. Sambas do passado de Caymmi, Geraldo Pereira
e da dupla Bide & Marçal eram de tal forma alterados
na rítmica e na harmonia que não soavam como
outra versão mas como um outro samba. Mais uma vez
João introduz elementos de elasticidade e flexibilidade
através de rubatos ou suspensões, apressando
ou encurtando frases, ou ainda colocando versos fora do
lugar para depois aguardar com o violão e seguirem
juntos novamente. Com sua voz cálida incorpora novos
clássicos da bossa nova, Coisa Mais linda, O Amor
em Paz e Insensatez.
Mas
o maior acontecimento desse disco, que tem seu nome
como título, foi a apresentação
das primeiras gravações de João com
violão e nada mais, formando uma entidade que seria
a tônica de seus recitais, o que há de mais
sublime na música brasileira ainda hoje. Não é um
cantor se acompanhando ao violão, são os
dois juntos, é um novo conceito representado por
dois timbres diferentes, o das cordas vocais e o das cordas
do violão formando um terceiro timbre, o de João
Gilberto.
João
Gilberto
Caso não tivesse gravado nada mais, bastaria essa
trilogia para que João tivesse completado sua obra.
Os 3 discos, que estão fora do mercado se mantêm
tão atuais como se gravados hoje, às vésperas
de seus 80 anos.
O
violão de João
Gilberto
O maestro Aderbal Duarte analisa
as inovações
e influências que o violão de João
Gilberto provocou na música popular brasileira
A Música Popular Brasileira tem estrutura
homofônica, ou seja, melodia com acompanhamento de
acordes, razão pela qual se torna fundamental o
aprendizado de algum instrumento de harmonia, para reproduzir
e combinar sons simultâneos. O piano, sem dúvida,
tem primazia sobre todos eles. Feito com 5 mil peças
individuais e recursos para tocar todos os sons musicais
em freqüências assimiláveis pelo ouvido
humano, é considerado o instrumento ideal para o
maestro, compositor, cantor, arranjador, professor...
Porém, todas essas vantagens se esbarram
em algumas questões de ordem prática, tais
como: Aquisição do instrumento (preço),
manutenção do equipamento, afinação
e, o mais complicado: mobilidade limitada. Com a verticalização
do teclado - sanfona, acordeom, etc., e o teclado eletrônico
- parte do problema foi solucionado. O que seria nossa
música sem Luiz Gonzaga e o que seria dele sem a
sanfona.
No entanto, o desenvolvimento da homofonia
no Brasil e a popularização dos acordes dissonantes em
nosso cancioneiro, estão mais ligados à história
recente do violão redimensionado por João
Gilberto, do que a qualquer outro instrumento de harmonia,
ou mesmo, ao estudo proposto por nossas instituições
formais de ensino. Quem possui formação acadêmica,
admite: "Esse tipo de harmonia dissonante, utilizada
por João Gilberto, só se aprende em edições
americanas, Songbooks, revistas, etc., as escolas só ensinam
música clássica, e por partitura".
Grandes nomes da nossa música, também declaram: "Aprendi
a lidar com acordes dissonantes, por ouvido, e João
Gilberto é a minha principal referência".
Na realidade, os acordes dissonantes utilizados
por João
Gilberto têm sua origem na música contrapontística
da polifonia renascentista, como conseqüência
da valorização de apojaturas, antecipações,
retardos, notas de passagem, etc., sendo que o tratamento
horizontal das vozes, ou seja, o contraponto foi se transformando,
gradativamente, em harmonia.
João Gilberto
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Não existe diferença entre as leis tonais
da música clássica européia, e da
música popular brasileira. Clássico é o
que atinge a perfeição de um momento humano
e o universaliza. O que não deve ser confundido
com o período clássico da História
da Música. (Renascença, Barroco, Classicismo,
Romantismo, Impressionismo, Expressionismo).
Existe sim, um processo natural de evolução
em que formações consonantes integraram elementos
dissonantes (apojaturas, antecipações, etc.,)
formando-se assim, complexos sonoros independentes, ou
seja, acordes dissonantes, que constituem uma das principais
características da nova escola de violão
brasileiro criada por João Gilberto, reconhecida
mundialmente.
O que difere entre a harmonia de música "clássica
e popular" são o sistema de notação
musical de acordes e a sinalização analítica,
decorrentes de estilo de época e contexto cultural.
As funções harmônicas dos acordes são
as mesmas, ou seja, tudo gira em torno da correspondência
entre os domínios de duas variáveis: tensão
e relaxamento. Em uma cadência harmônica todo
acorde tem função de tencionar ou relaxar,
com maior ou menor intensidade, o que induz a sensações
de movimento e repouso, respectivamente.
Redimensionamento
do violão
brasileiro
Até o final de década de 1950, o violão,
como instrumento de harmonia, era utilizado como parte
da orquestração de um conjunto denominado
regional. Este conjunto apresenta funções
bastante específicas para cada instrumento, de acordo
com o seu respectivo registro sonoro. Constituído
de cavaquinho ou bandolim, no registro agudo; de violão,
no registro médio; violão de sete cordas
ou contrabaixo, no registro grave; e de pandeiro na seção
rítmica.
João Gilberto, além de redimensionar todas
as funções do regional no registro médio
do violão, atribuindo acordes específicos
para cada registro, mantém, também, o impulso
rítmico constante da unidade de tempo do compasso
binário, tão essencial à nossa expressão
musical, assim como, a altura ou o timbre. Além
disso, dimensiona, esteticamente, padrões rítmicos
utilizados em conjunção com a melodia e harmonia
mostrando que o valor expressivo de um acorde depende da
combinação entre função harmônica,
altura, timbre, e movimento (balanço).
João
Gilberto
A batida da bossa nova criada por João Gilberto – condução
rítmica dos acordes do acompanhamento – que
tem origem no samba, maior expressão da nossa música,
não é uma só, mas sim, uma combinação
de diversas células rítmicas dimensionadas
esteticamente entre si, e todas, com o fraseado melódico.
João faz um jogo de cena entre voz e violão
dentro de um conceito mais amplo de harmonia, como teoria
da concatenação de acordes, que surgiu para
substituir o horizontalismo do contraponto.
Portanto, a transmissão de conhecimento sobre o
violão de João Gilberto não deve ser
limitada ao mesmo tipo de notação utilizada
nas edições de música popular: melodia
cifra, e desenho dos acordes. Não é suficiente.
Deve constar, também, a escrita da condução
rítmica dos acordes do acompanhamento (balanço).
O movimento do acorde é tão importante quanto
o seu valor funcional e sua estrutura vertical.
Origem
da concepção harmônica de João
Gilberto
A organização dos sons musicais, na cultura
ocidental, se baseia em dois grandes sistemas: modal e
tonal. Outros tipos de sistemas como atonal, dodecafônico,
serial, microtonal, etc., são praticamente restritos
a um seguimento da musica erudita.
Em fins do século XVII e em princípios do
século XVIII o sistema modal, composto de sete modos, é substituído
pelo tonal de maior e menor, surgindo assim, a harmonia
diatônica, baseada em funções principais
e secundárias e no princípio tonal da cadência.
Muitos anos mais tarde com a evolução da
harmonia em busca de meios mais expressivos e uma graduação
mais refinada dos matizes, foram inseridos acordes de graus
modais, ao sistema tonal - funções auxiliares
ou acordes de empréstimo modal - ampliando, desse
modo, o conceito de tonalidade, onde o contraste de sistemas
se torna característica marcante do período
impressionista francês com a música de Debussy,
Satie, Ravel, entre outros.
João Gilberto
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O fato de Salvador-Bahia ser a primeira
capital do Brasil, e Pernambuco, onde as Capitanias Hereditárias prosperaram,
justifica a sobrevivência do modalismo no nordeste
do brasileiro em sua forma original, tornando mais presente
a assimilação do contraste de sistemas (Modal
e Tonal) em nossa música.
Por isso, o conceito harmônico de João Gilberto,
além de respaldado por um alto grau de refinamento
estético, realça características modais,
mesmo em melodias de diferentes períodos e regiões.
Sua obra não se atém a estilo de época.
Em João conta mais como ele toca, e não o
que ele toca - valendo a ressalva que o repertório
escolhido por ele é de altíssima qualidade,
impulsionando o resgate de clássicos do cancioneiro
popular de épocas passadas, como também,
a divulgação de novas criações.
Miles Davis sintetizou: "Ele pode até ler
jornal que soa bem."
Outro fato relevante que, provavelmente,
nos aproximou da música impressionista é o modelo literário
com referências francesas, importado pelo Brasil
desde a independência até o fim do século
XIX. Durante o período colonial essas referências
eram portuguesas.
Quinci Jones, mito do Jazz, afirmou recentemente
que a música americana, assim como, a brasileira, tem
forte influência do impressionismo francês,
sendo que, segundo ele, a música popular brasileira é mais
erudita.
Fontes:
Zuza Homem de Mello / pesquisador - O Estado de S.Paulo
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje; Aderbal Duarte,
especial para O Estado de S. Paulo