
Pablo
Picasso: Dom Quixote (1955)
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Para
o escritor espanhol Oitocentista Angel Ganivet: “não
existe na arte espanhola nada que sobrepuje o Quixote,
e o Quixote não somente foi criado à maneira
espanhola, mas é a nossa obra típica,
‘a obra’ por antonomásia, porque
Cervantes não se contentou em ser ‘independente’:
foi um conquistador, porque enquanto os demais conquistadores
conquistavam países para a Espanha, ele conquistava
a própria Espanha, encerrado numa prisão”.
A magnitude do Dom Quixote de Cervantes foi reconhecida
por Montesquieu nos seguintes termos: “O melhor
livro dos espanhóis é aquele que zomba
dos outros”. Na opinião do crítico
literário norte-americano Kenneth Rexroth, Cervantes
escreveu o maior livro de ficção que a
cultura ocidental produziu.

Composto
por 126 capítulos de sabedoria, amizade, enternecimento,
encantamentos, loucuras e divertimento, divididos em
duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em
1615.
A
história é apresentada sob a forma de
novela realista. A primeira parte da obra deixa a impressão
de liberdade máxima, a segunda parte produz a
sensação constante de nos encontrarmos
encerrados em limites estreitos. Essa sensação
é sentida mais intensamente quando confrontada
com a primeira parte. Se anteriormente, a ironia era,
sobretudo, uma expressão amarga da impossibilidade
de dar realidade a um ideal, com a segunda parte nasce
muito mais da confrontação das formas
da imaginação com as da realidade. A primeira
parte de Dom Quixote é tipicamente barroca. Cervantes
dá a sua própria definição
da obra: "orden desordenada (...) de manera que
el arte, imitando à la Naturaleza, parece que
allí la vence". O processo adoptado por
Cervantes — a paródia — permite dar
relevo aos contrastes, através da deformação
grotesca, pela deslocação do patético
para o burlesco, fazendo com que o burlesco apague momentaneamente
a emoção, estabelecendo um entrelaçado
espontâneo de picaresco, de burlesco e de emoção.
O conflito surge do confronto entre o passado e o presente,
o ideal e o real e o ideal e o social.
Síntese da Obra
A
ação principal do romance gira em torno
das três incursões feitas pelo protagonista
e por seu fiel amigo e companheiro, Sancho Pança,
que tem um perfil mais realista, por terras de La Mancha,
de Aragão e de Catalunha. O personagem principal
da obra é um pequeno fidalgo castelhano que perdeu
a razão pela leitura assídua dos romances
de cavalaria e pretende imitar seus heróis prediletos.

Envolve-se
em uma série de aventuras, mas suas fantasias
são sempre desmentidas pela dura realidade. O
efeito é altamente humorístico.
O
verdadeiro nome do pobre fidalgo é Alonso Quijano
(Quixano), chamado pelos vizinhos de o Bom. Já
de certa idade, entrega-se à leitura desses romances
e sua loucura começa quando toma por realidades
históricas indiscutíveis as façanhas
dos personagens dos livros, as quais comenta com os
amigos, o cura e o barbeiro do lugar. Quijano investe-se
dos ideais cavalheirescos de amor, de paz e de justiça,
e prepara-se para sair pelo mundo, em luta por tais
valores e por viver o seu próprio romance de
cavalaria. Escolhe um título para si mesmo, o
de Don Quijote de la Mancha, apelida um cavalo velho
e descarnado com o nome de Rocinante e elege como dama
ideal de seus sentimentos uma simples camponesa a quem
dá o nome de Dulcinea del Toboso, suposta dama
de alta nobreza
Após um dia inteiro de caminhada sob o sol, depara
com uma estalagem, que em sua mente perturbada se converte
num castelo, onde pede para ser ordenado cavaleiro pelo
estalajadeiro, que quase não consegue conter
o riso. No dia seguinte, ao investir contra o grupo
de comerciantes que vê como adversários,
cai de rocinante e tem seu corpo moído por pauladas.
Um conhecido da aldeia encontra o cavaleiro, entre gemidos
e lamentos, e o conduz novamente à sua casa.Seguindo
aos conselhos do Pe. Tomás e do barbeiro Nicolau,
a ama e a sobrinha queimam seus livros e lacram a porta
da biblioteca.
Enquanto todos acham que a estratégia da destruição
dos livros havia sido um sucesso, Dom Quixote, pensando
tratar-se de uma magia de algum cruel feiticeiro, resolve
voltar à aventura, agora acompanhado do escudeiro
Sancho Pança: um ingênuo e materialista
lavrador, que aceita seguir o fidalgo pela promessa
de uma ilha para governar.
As viagens se sucedem sob a alucinação
de quem está vivendo no tempo da cavalaria. Em
suas andanças, Dom Quixote encontra moinho de
vento que confunde com gingantes. Arremete contra um
dos moinhos, cujas pás, devido a um vento mais
forte, lançam o cavaleiro para longe.O escudeiro
socorre seu mestre. Dom Quixote não dando o braço
a torcer, diz que o feiticeiro, ao notar que o cavaleiro
estava vencendo, transformou os gigantes em moinhos.
Mas adiante confundindo dois rebanhos de carneiros com
exército de inimigos, avança contra os
animais e mais uma vez é surrado, pelos pastores;
além de ser pisoteado pelas ovelhas. No chão
em meio ao estrume dos animais, ferido e desdentado,
recebe do escudeiro a alcunha de O Cavaleiro da Triste
Figura.
No desejo de combater as injustiças do mundo
e homenagear sua dama, o nobre e patético personagem
segue viagem enfrentando situações supostamente
perigosas e sempre radículas: imagina gigantes
em rodas-d`águas; vê um cavaleiro de elmo
dourado em um barbeiro; ajuda criminosos a fugirem,
pensando estar libertando escravos. De suas desventuras,
restam-lhes sempre os enganos, as surras, as pedradas
e as pauladas.
À
beira da estrada, o cavaleiro da triste figura e seu
fiel escudeiro encontram abrigo e deparam com o Pe.
Tomás e o barbeiro Nicolau, amigos da aldeia
onde moram e que estão à sua procura.
Os dois convencem Sancho a ajudá-los e acabam
levando, mais uma vez, e agora enjaulado, Dom Quixote
para casa. Lá, cansado doente e abatido pelos
reveses e pelas surras que levara, o fidalgo sossega.
Até receber a visita do bacharel Sansão,
que traz consigo um livro narrando As estranha aventuras
de Dom Quixote. Com a fama, o cavaleiro tem seu espírito
aventureiro revigorado e mais uma vez, convencendo Sancho
Pança a companhá-lo, parte para a estrada,
ainda guiado pelo amor de Dulcinéia, e pelo desejo
de vencer o perverso feiticeiro e, com ele, as injustiças
do mundo.

Em Toboso, à procura de sua amada, Dom Quixote
encontra três lavradoras montadas em asnos, carregando
repolhos para o mercado. Sancho diz que se trata de
Dulcinéia e suas damas de companhia, tentando
convencer Dom Quixote. Ao se ajoelhar diante de sua
sonhada dama, o cavaleiro leva uma repolhada na cabeça.
Sancho diz se tratar de um anel de esmeralda enfeitiçado
em repolho, e Dom Quixote guarda a “prenda”
na bolsa, duvidoso, todavia satisfeito.
Disfarçado em cavaleiro dos Espelhos, o baixinho
Sansão desafia Dom Quixote, no intuito de levá-lo
para casa e, com isso, agradar a sobrinha do fidalgo.
Mas, traído por seu cavalo, que prefere comer
grama ao duelar, perde o combate. Adiante, Dom Quixote
encontra um duque e uma duquesa que, por já terem
lido o livro com suas aventuras, resolvem se divertir
à custa da dupla: disfarçado em feiticeiro
Merlin, o duque inventa um suposto cavalo mágico
de madeira que levaria Dom Quixote até o perverso
feiticeiro. Vendam o cavaleiro e o escudeiro sobre a
“mágica montaria” e chacoalham o
cavalinho de balanço, enquanto os dois pensam
estar voando. Ao atear fogo no rabo do cavalo, recheados
de fogos de artifício, o cavaleiro e o escudeiro
são lançados à distância.
Seguindo viagem, com mais alguns arranhões, Dom
Quixote e Sancho Pança ouvem um grito assustador,
É o cavaleiro da lua cheia (na verdade, Sanção,
agora mais bem preparado e decidido). Que desafia O
cavaleiro da Triste Figura: quem perder o combate terá
de pôr fim à sua vida de cavaleiro andante.
Sanção vence, o fidalgo volta ao lar.
No final da história, recuperando a razão,
Dom Quixote renuncia aos romances de cavalaria e morre
como um piedoso cristão.

Don
Quixote Toledo. Romanelli.
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Literatura
Comentada
I,
pg. 28: [...] e que todos os Cavaleiros Andantes levaram
as capangas cheias para o que desse e viesse, e que
igualmente levaram camisas, e uma caixinha pequena cheia
de ungüentos para curar as feridas que recebessem
a não ser que tivessem por amigo algum sábio
encantador o qual, quando estivessem feridos, lhes enviasse
pelo ar, em alguma nuvem, uma donzela ou anão
com alguma redoma cheia de tais poderes que, em provando
de uma só gota, sarassem de suas feridas. Mas,
se isto não fosse possível, todos os cavaleiros
providenciavam que seus escudeiros trouxessem dinheiro,
camisas e ungüentos.
Essa
passagem nos sugere que a magnitude da missão
dos Cavaleiros Andantes, o seu significado ético
e moral, o desprendimento de suas ações,
tudo isto implica num interesse pelo semelhante e, num
certo sentido, no abandono de seus interesses pessoais.
Assim sendo, o Cavaleiro Andante tinha uma expectativa,
e talvez até uma crença na existência
de uma rede de mobilização social ou mesmo
mística, no sentido de ampará-lo. Nesse
trecho, são mencionados como personagens passíveis
de vir em seu auxílio, as donzelas e os anões,
quer dizer, figuras míticas cuja função
precípua seria atendê-lo e assessorá-lo.
Na ausência, no entanto, desses seres sobrenaturais,
espécie de "gênios da lâmpada"
que pudessem socorrê-lo mediante um estalar de
dedos, restava-lhe a presença terrena de um fiel
escudeiro. Esse escudeiro, curiosamente, deveria portar
pelo menos três objetos, dinheiro, camisas e ungüentos,
ou seja, elementos simbólicos do poder de troca,
do poder protetor e do poder curativo. Está implícito
aqui que o escudeiro é um mero "portador"
desses objetos, sendo o seu uso e significado de competência
exclusiva do Cavaleiro Andante, que poderia solicitá-los
na medida das suas necessidades. Essa questão
comporta, porém, uma sutileza já que sendo
o escudeiro um "espírito prático"
que se contrapõe ao "mundo da lua"
do seu amo, ele possui uma sabedoria material a respeito
do uso dos objetos sob sua guarda que lhe confere, de
fato, uma opinião de valor.
I,
pg. 58: Neste meio tempo, Dom Quixote começou
a persuadir um lavrador seu vizinho, homem de bem (se
tal título se pode dar a um pobre), mas de pouca
inteligência, a sair consigo como escudeiro: tanto
lhe martelou, que o pobre coitado concordou. Dizia-lhe,
entre outras coisas, que deveria ir de bom grado, pois
poderia ocorrer de ter a sorte de ganhar uma ilha, da
qual poderia ser governador.
O
"aliciamento" de Sancho na empreitada fantasiosa
de Dom Quixote nos é descrita como fruto de uma
manobra astuciosa, impingida a um espírito simplório
e de pouca inteligência que se deixa enganar pela
isca sedutora de ser presenteado, ao final das aventuras,
com a governança de uma ilha hipotética.
Parece-me interessante indagarmo-nos a respeito do significado
dessa oferta. Por que uma ilha? Se o intuito verdadeiro
fosse conferir-lhe um poder genuíno, o natural
seria a outorga de algum feudo e não a posse
de uma ilha, prontamente associável à
idéia de exílio ou desterro. Fica-se aqui
com a falsa impressão de que Sancho embarcará
enganado nas aventuras e não, como me parece
ser o caso, que ambos necessitam um ao outro, para encontrar-se.
I,
pg. 64: – E é verdade – respondeu
Dom Quixote – e se me não queixo com a
dor, é porque aos Cavaleiros Andantes não
é dado lastimarem-se de feridas, ainda que por
elas lhe saiam as tripas.
–
Sendo assim, já estou calado – respondeu
Sancho – mas sabe Deus se eu não achava
melhor que Vossa Mercê se queixasse quando lhe
doesse alguma coisa. De mim sei eu, que, em me doendo
seja o que for, hei de por força berrar, se é
que a tal regra, de não dar mostras de sentir,
não chega também aos escudeiros do Cavaleiro
Andante.
O
próprio Dom Quixote, no entanto, encontra-se
exilado num mundo irreal de sonhos e fabulações
que o deixa alienado não só de seu grupo
social e do momento histórico em que vive, mas
também de seu próprio corpo, como explicitado
nessa postura de "anestesia moral" que ele
assume, colocando-se acima e a salvo das mazelas do
corpo. Sancho, por seu turno, deixa explícito
que, doendo-lhe alguma coisa ele não hesitaria
em "botar a boca no trombone", reivindicando
assim qualquer tipo de ajuda que pudesse lhe aliviar
o sofrimento. Temos aqui dois sistemas de funcionamento:
um estóico o outro hedonista; o mais significativo,
porém, é que, permitindo-se sofrer a dor
Sancho, em princípio, dava-se a chance de aprender
com a experiência enquanto Dom Quixote negando
a dor, anulava concomitantemente o valor da experiência,
alçando-se a um universo idealista.
I,
pg. 76: Das graciosas argumentações que
ocorreram entre Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança:
–
Que bálsamo é este (Bálsamo de
Ferrabraz) – disse Sancho Pança.
–
É um bálsamo – respondeu Dom Quixote
– do qual tenho a receita na memória, com
o qual não precisam ter medo da morte, nem pensar
em morrer por qualquer ferimento; e assim, quando o
tiver preparado e o entregar a você, se constatar
que me partiram o corpo ao meio em alguma batalha, como
muitas vezes pode acontecer, recolha o pedaço
do corpo que tenha caído ao solo (com muito cuidado,
antes que o sangue fique gelado) e a coloques sobre
a outra metade que tiver ficado na sela assegurando-se
que estejam bem encaixadas; a seguir, me faça
beber só dois tragos do referido bálsamo
e verás que eu estarei mais saudável que
uma maçã.
–Se
isto for verdade – disse Sancho Pança –
renuncio agora mesmo à governança da ilha
prometida e nada mais quero em pagamento de meus muitos
e bons serviços, do que receber de Vossa Mercê
a receita desta bebida milagrosa, que tenho para mim
se poderá vender a olhos fechados cada onça
dela por mais de quatro vinténs. Não preciso
mais para passar o resto da vida louvadamente e com
todo o descanso. O que falta saber, é se não
será muito custoso arranjá-la.
–
Com menos de 3 reais se pode fazer camada e meia –
respondeu Dom Quixote.
–
Valha-me Deus! – replicou Sancho. E o que Vossa
Mercê está esperando para me ensinar?
–
Cala-te, amigo – respondeu Dom Quixote –
que maiores segredos penso lhe ensinar e com maiores
favores lhe obsequiar; mas , por enquanto, vamos nos
curar, pois minha orelha está doendo mais do
que eu gostaria.
O
bálsamo de Ferrabraz, substância milagrosa
cuja fórmula Dom Quixote guarda em sua "memória"
tem não só o poder radical de afastar
a morte, mas também o poder reparador de reconstituir
o todo, mediante o rejunte de suas partes. As instruções
que Sancho recebe para recolher a metade do corpo de
Dom Quixote que possa ter caído ao solo, encaixando-a
na outra metade que tenha permanecido na sela, acompanhadas
por uma série de cuidados (presteza para impedir
o congelamento do sangue e ministração
de dois goles do bálsamo), ilustra com clareza
a busca do Eu no Outro. De fato, a fórmula que
Dom Quixote guarda na memória a respeito de sua
unicidade, é algo teórico que para completar-se
depende de um complemento prático a ser instrumentalizado
por Sancho. Note-se que nessa divisão de funções
do par humano, encontramos uma repetição
da cisão artificial sofrida por um corpo que
é dividido em dois por um golpe de espada. Mas,
qual será o "bálsamo" que "cola"
a parte fantasiosa da dupla (Dom Quixote) com a parte
realista (Sancho Pança)? Socorrendo-nos aqui
da psicanálise, diríamos que esse conectivo
é o elemento subjacente a todas as teorias de
intersubjetividade, que nos ensinam, em resumo, que
a unidade funcional do ser humano é o par ou
seja, o sujeito se constitui através do objeto,
e o objeto através do sujeito.
Na
parte final do diálogo, observamos uma inversão
na colaboração mútua: Dom Quixote
aplaca a cobiça de Sancho inflada pela perspectiva
de enriquecer com o elixir milagroso, advertindo-o de
que não se deslumbrasse com o ganho fácil
pois assim, diz Dom Quixote, "maiores segredos
poderei lhe ensinar".
A
analogia entre o indivíduo reconciliado consigo
mesmo, mediante a junção de suas partes,
e a maçã, ilustra o cuidado simbólico
com que Cervantes revestia as suas metáforas,
se lembrarmos ser a maçã o fruto da liberdade
e do conhecimento que garante a juventude, a renovação
e o frescor eternos.
I,
pg. 82: Cena da refeição com os cabreiros
onde Dom Quixote, emocionado com o espírito democrático
do grupo, convida Sancho a sentar-se a seu lado:
–
Viva muitos anos – respondeu Sancho – mas
devo dizer a Vossa Mercê que, se fosse para comer
bem, eu preferia comer sozinho e de pé, do que
sentado junto a um imperador. E para ser sincero ainda
saboreio mais aquilo que como no meu cantinho sem cerimônias
ou melindres, mesmo que não passe de pão
e cebola, do que os perus de outras mesas com a obrigação
de mastigar devagar, beber pouco, me limpar o tempo
todo, não espirrar nem tossir quando me der vontade,
nem fazer outras coisas que a solidão e a liberdade
permitem. Portanto, meu senhor, as honras que Vossa
Mercê quer me dar por ser eu ministro da cavalaria
andante e seu escudeiro, troque-as por outras coisas
que me sejam de melhor proveito pois, se bem que estas
me agradem, dispenso-as desde já até ao
fim do mundo.
Apesar
disso hás de te sentar, porque Deus celebra quem
se humilha.
[...]
Dom Quixote: - Ditosa idade e afortunados séculos
aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados,
não porque nesses tempos o ouro (que nesta idade
de ferro tanto se estima) se alcançasse sem fadiga
alguma, mas sim porque então se ignoravam as
palavras teu e meu.
Nesta
cena, Dom Quixote emociona-se com a generosidade dos
cabreiros que convidaram nossos heróis a compartilhar
de sua frugal refeição e, num rompante
de igualitarismo democrático, convida Sancho
a sentar-se a seu lado. Sancho recusa o convite tirando
da algibeira uma argumentação incontestável,
segundo a qual não se pode abrir mão da
sem-cerimônia natural em prol dos artificialismos
da etiqueta à mesa. Sentindo-se acuado, Dom Quixote
sai pela tangente prescrevendo a Sancho uma espécie
de provérbio diagnóstico: "Apesar
disso hás de te sentar porque Deus exalta quem
se humilha"; sua finalidade é calar a boca
do outro metendo-lhe goela abaixo uma frase feita.
É
preciso entender que, numa tal circunstância,
a dispensa do outro é só aparente já
que fruto de uma argumentação que incomoda
o sujeito em função de sua veracidade,
obrigando-o a interromper temporariamente a fonte contestatória,
tendo em mente ou uma digestão posterior do incômodo,
ou uma ilusória eliminação arrogante
do mesmo.
Atente-se
que, ao final, Dom Quixote vale-se de uma bela imagem
que não só exalta a ausência da
possessividade, mas também implicitamente, a
formação de um campo emocional comum entre
quem oferece e quem recebe.
I,
pg. 120: Na estalagem que Dom Quixote imaginava ser
Castelo, Sancho explica à empregada o que é
um "Cavaleiro de Aventuras":
Sancho:
– Pois sabei, irmã, que cavaleiro de aventuras
é um sujeito que num instante tanto pode ser
desancado, quanto ser um imperador. Hoje é a
criatura mais necessitada e desgraçada do mundo,
amanhã terá duas ou três coisas
reais para dar a seu escudeiro.
O
"Cavaleiro de Aventuras" surge aqui como a
versão sanchiana do Cavaleiro Andante. Sua versão,
como sempre, é concisa e expressiva: "É
um sujeito que, num instante, tanto pode ser desancado,
quanto ser um imperador. Hoje é a criatura mais
necessitada e desgraçada do mundo, amanhã
terá duas ou três coisas reais para dar
a seu escudeiro".
Sancho
destaca de modo enfático, a instabilidade e a
transitoriedade da condição do Cavaleiro
Andante, preferindo assim caracterizá-lo melhor
como um aventureiro, muito mais uma vítima do
destino do que seu construtor. Ao puxar a sardinha para
o seu lado, ele, no entanto, está também
nos informando a respeito da sua consciência de
que, na condição de beneficiado, sua situação
também é instável e conjuntural.
Eu
me surpreendi quando, pesquisando o significado do termo
"escudeiro" descobri que o verbo escudeirar,
na sua acepção transitiva tem não
só um sentido de suportar uma provação,
agüentar um rojão, enfrentar sem vacilo
ou recuo uma empreitada, mas também a conotação
de colocar de pé, endireitar, fixar firmemente
numa dada posição. O escudeiro, portanto,
antes de ser uma figura passiva, submissa e dependente
do fado de seu senhor, é mais um colaborador
ativo, uma instância vigorosa de apoio e solidariedade,
tanto o co-criador de um destino quanto o co-responsável
por sua fixação.
I,
pg. 218: Sancho argumentando a impropriedade de Dom
Quixote tomar as dores da Rainha Madasima, que fora
injuriada pelo louco de Serra Morena ao descrevê-la
como amancebada, optando por um princípio ético:
–
Eu cá não o profiro nem o penso –
respondeu Sancho – os outros lá, se avenham:
e se os maus caldos mexerem, tais os bebam. Se foram
amancebados ou não, contas são essas que
já dariam a Deus; venho da minha vida, não
sei mais nada. Que me importam as vidas alheias? Quem
compra e mente na bolsa o sente; quanto mais, que eu
vim ao mundo e nu me vejo: nem perco nem ganho. E também
que o fossem, que me faz isso a mim? Muitas vezes não
mais as vozes que as nozes; mas quem pode ter mão
em línguas de praguentos, se nem Cristo se livrou
delas?
–
Valha-me Deus! disse Dom Quixote – que de tolices
vais enfiando Sancho! Que tem que ver o nosso caso com
os adágios que estás arreatando? Por vida
tua, homem, que te cales; daqui em diante ocupa-te em
esporear o teu asno, quando o tiveres, e não
te metas no que te não importa, e entende com
todos os teus cinco sentidos, que tudo quanto eu fiz,
faço ou farei, é muito posto em razão
e mui conforme as regras de cavalaria, que as sei melhor
eu que todos os cavaleiros do mundo.
Os
princípios éticos de Dom Quixote estão
pautados por regras apreendidas por ele nos romances
de cavalaria, constituindo-se desse modo num conhecimento
livresco, ou seja, enquadrando-o na concepção
pura de pedantismo. Sancho, no entanto, nos oferece
uma bela demonstração de humildade ao
revelar ter aprendido, ao longo de sua vida que, tendo
nascido nu como os demais, não lhe competia opinar
sobre a vida alheia, muito menos emitindo juízos
de valor. Para reforçar a solidez de sua argumentação,
ele invoca dois provérbios sendo que o segundo
ilustra com perfeição o poder injurioso
das palavras conferindo precedência às
vozes em relação às nozes, isto
é, destacando que a palavra pode ser manipulada
de tal modo a deturpar a realidade que ela representa
(a calúnia que o louco imputara à Rainha
Madasima).
I,
pg. 446: Reencontro de Dorotéia com D. Fernando
na estalagem:
Dom
Quixote: – Partamos pois, o quanto antes. Sancho,
vai selar o Rocinante, aparelha o teu jumento e o cavalo
da rainha, e depois de nos despedirmos do castelão
e destes senhores, partamos sem demora.
Sancho
que participara de tudo, disse abanando a cabeça:
Ai, senhor, senhor! Nem tudo o que reluz é ouro;
com perdão seja dito do ouro verdadeiro [...].
Se o senhor se irritar, eu me calarei, deixando de dizer
aquilo a que sou obrigado, como leal escudeiro e bom
criado, a seu amo.
Dom
Quixote: – Dize o que quiseres, conquanto que
suas palavras não visem me atemorizar; assuma
o seu medo, se o tiveres, que eu procederei como quem
não tem, se for o caso.
Sancho:
– Não se trata disso; cruz credo! –
respondeu Sancho – mas sim de que tenho certeza
de que esta senhora que diz ser a rainha do grande reino
de Micomicão, não o é mais do que
minha mãe; se ela o fosse, não andaria
distribuindo olhares amorosos e ternos, para um dos
aqui presentes.
Ah!
Deus santíssimo, que fúria teve Dom Quixote
ao ouvir as palavras de seu escudeiro! Foi de tal monta
que, com voz atrapalhada, gaguejando e lançando
fogo pelos olhos disse: - Oh! Velhaco, vilão,
atrevido, ignorante, desbocado, fofoqueiro e maledicente!
Que palavras são estas que ousastes dizer em
minha presença e destas senhoras, como é
que ousastes por na tua imaginação semelhantes
desonestidades e atrevimentos? Vai-te da minha presença
monstro da natureza, depositário de mentiras
e embuste, inventor de maldades, publicador de sandices,
inimigo do respeito que se deve às pessoas reais;
vai-te, e não apareças diante de mim sob
pena de minha ira.
Ao
longo da história, Cervantes vai tecendo uma
sutil dialética comunicativa entre Dom Quixote
e Sancho Pança caracterizada pela fala desassombradamente
épica do primeiro, em contraposição
à fala espontaneamente crua do segundo, a qual,
por saber-se portadora da verdade incômoda e antecipando
a reação irada de seu amo, freqüentemente
se cala atemorizada.
Ora,
Dom Quixote como todo bom sujeito que tem sua curiosidade
aguçada pela insinuação de um interlocutor
de que possui algo a dizer, mas não o faz por
temer represálias, lança a Sancho um repto,
desafiando-o a "assumir o seu medo, se o tiveres,
que eu procederei como quem não o tem se for
o caso" e, além do mais, advertindo-o para
que "suas palavras não visem me atemorizar".
Vislumbramos,
aqui, o mecanismo psicológico da projeção
na medida em que Dom Quixote transfere a Sancho o seu
próprio medo de não suportar a verdade,
sem debitar a este estratagema sua pseudo-habilidade
de "proceder como quem não o tem".
O interessante a observarmos é que, sendo a mentira
um poderoso veneno para a vida mental, a personalidade
reage vigorosa e involuntariamente a ele, do mesmo modo
que sendo atingido por um gás tóxico o
organismo tosse, lacrimeja e se debate.
Foi
esta, exatamente, a reação de Dom Quixote:
em vez de admitir a identidade plebéia de Dorotéia,
ele se insurge furioso contra a insinuação
caluniosa de Sancho de que ela estaria lançando
olhares langorosos para um homem que, afinal de contas,
não passava de seu próprio marido. O jorro
de impropérios, a variedade de sentenças
condenatórias, a denúncia do perigo público
encerrado nesse "monstro da natureza" nos
atestam o quanto Sancho tinha razão em duvidar
da capacidade de seu amo de lidar com a verdade, comprovando
assim, mais uma vez, que tal capacidade deveria ser
exercida pelo escudeiro, instância, como vimos,
apta a suportar a frustração que sempre
nos é imposta pela realidade.
I,
págs. 462-501: No capítulo 47 da edição
ilustrada por Gustave Doré vemos um desenho onde
Dom Quixote está recostado com ar sorumbático
no interior da gaiola onde o colocaram, enquanto por
fora da grade um risonho Sancho Pança espreita
em segundo plano com tal grau de alegria, que sua imagem
expansiva "salta" a imagem retraída
de Dom Quixote, impondo-se assim a nós, malgrado
estar na posição de fundo e não
de figura.
Destaco
essa imagem como uma metáfora poderosa da relação
entre Dom Quixote e Sancho Pança. De fato, podia-se
dizer que o Cavaleiro da Triste Figura está preso
permanentemente num universo visionário onde,
sendo a sombra de Cavaleiros Andantes, torna-se-lhe
impossível experimentar uma identidade própria.
Seu escudeiro, no entanto, apesar de ser, por definição,
a sombra de seu Senhor, exerce sempre essa função
a partir de sua "visão de mundo" destilando
sempre com naturalidade seus desejos e valores.
Tomando
como marco o episódio do engaiolamento, a narrativa
de Cervantes toma um rumo muito interessante, a meu
ver, já que nos permite perceber, com clareza,
a pobreza dos desejos e pulsões no Quixote em
contraste com a riqueza destes elementos em Sancho.
Dom
Quixote contesta, inicialmente, sua condição
de engaiolado invocando, como sempre, argumentos pseudo-racionais
como a lentidão do carro de bois, incompatível
com a "estranha ligeireza" com que os Cavaleiros
Andantes costumam ser transportados seja por nuvens,
carros de fogo ou hipogrifos. Sancho retruca, espontaneamente,
que aqueles acontecimentos não eram nada católicos,
deixando entrever sua suspeita de que o encantamento
que gerara o engaiolamento, não passara de uma
armação do grupo interessado em mandar
Dom Quixote de volta para sua casa sem outras trapalhadas.
Foi o bastante para Dom Quixote instaurar uma nova discussão,
agora a respeito da imaterialidade dos demônios
que o enjaularam, o que extraiu de Sancho comentários
nascidos da observação prática
como, por exemplo, a materialidade carnal daquelas pessoas
ou a qualidade nada sulfurosa de seus perfumes.
A
seguir, no momento da partida, Dom Quixote se despede
formal e cavalheirescamente das "damas do Castelo",
em realidade, a vendeira, sua filha e a empregada, enquanto
os demais homens estavam às voltas com os belos
personagens femininos, as donzelas Lucinda e Dorotéia,
e a sensual Zoraida.
Parece-me
oportuno a esta altura fazermos uma observação
a respeito da ausência de erotismo e sensualidade
no Quixote, para quem os atrativos femininos estão
condenados ao amor platônico que ele devota à
imaginária Dulcinéia del Toboso, cuja
existência não ultrapassa as fronteiras
de seu mundo mental. Sancho, em contraparte, exala não
só a objetividade prática requerida pelas
lides do cotidiano, mas também a aceitação
do mundo dos desejos e das pulsões, o envolvimento
passional com os apetites do corpo e do espírito.
É
importante ressaltar que a apreensão desse quadro
não ocorre na narrativa ficcional mediante uma
informação direta, mas sim por meio de
descrições disseminadas ao longo do relato,
que vão impregnando insensivelmente o leitor.
Assim, por exemplo, contestando a reiteração
estereotipada de Dom Quixote que informara a um grupo
de transeuntes estar engaiolado por força de
encantamento, Sancho retruca com os pés no chão:
"[...] verdade é que o senhor Dom Quixote
vai aí tão encantado como minha mãe
que Deus haja; ele está em todo o seu juízo,
come e bebe e faz todas as suas necessidades, como os
outros homens e como as fazia ontem antes que o engaiolassem".
E, face à intimidação do barbeiro
que o ameaça de engaiolá-lo também
caso insistisse em denunciar o embuste que tinham armado
para conter Dom Quixote, prossegue Sancho em defesa
de seu direito de receber uma ilha para governar: "[...]
ainda que pobre, sou cristão, velho e não
devo nada a ninguém; e se desejo ilhas, outros
desejam coisas piores; e cada qual é filho de
suas obras; e sendo homem, posso vir a ser papa, quanto
mais governador de uma ilha, podendo meu amo ganhar
tantas, que lhe falte a quem as dê".
Por
outro lado, estabelece-se na seqüência um
diálogo entre o Cura e o Cônego que por
ali transitava, a respeito dos malefícios dos
romances de cavalaria, por estimularem irrealidades
e ilusões. Isto nos evoca, curiosamente, a conclusão
formulada pelo establishment científico do final
do século XVIII a respeito dos quadros de possessão
demoníaca, sonambulismo e múltipla personalidade,
todos entendidos como frutos de "doenças
da imaginação". O Cura, entretanto,
não deixa de reconhecer o outro lado da moeda,
ressaltando a virtude de que Sendo isto feito com aprazível
estilo e engenhosa invenção, que se aproxime
da verdade tanto quanto possível, há de
compor sem dúvida uma fina tela, entretecida
de fios formosíssimos que, depois de acabada,
se mescle tão perfeita e linda, que consiga o
fim melhor a que se aspira nesses escritos que é
ensinar e deleitar; porque a solta contextura destes
livros dá lugar a que o autor possa mostrar-se
épico, lírico, trágico, cômico,
com todas as partes que encerram em si as dulcíssimas
e agradáveis ciências da poesia e da oratória
– que a epopéia tanto pode escrever-se
em prosa como em verso.
Ora,
a ironia ressaltada por Cervantes é que Dom Quixote
realiza suas façanhas "by the book",
ou seja, tentando transpor a ficção para
a realidade sem adaptações enquanto Sancho,
por seu turno, consegue ser espontaneamente trágico,
cômico e mesmo épico. Além do mais,
quando se faz necessário, Sancho mostra-se criativo
dando um xeque-mate em Dom Quixote no momento que o
obriga a duvidar de seu encantamento pelo simples fato
de ainda estar escravo de suas necessidades fisiológicas,
exortando-o, inclusive, a sair da gaiola para poder
evacuar.
Esse
contraponto reaparece nas cenas seguintes onde nos deparamos
primeiro com um duelo intelectual entre o Cônego
e Dom Quixote, a respeito da autenticidade das histórias
de cavalaria e, por conseguinte, da sanidade mental
de um e de outro. A dimensão de conhecimento
que aqui está em jogo é aquela que, através
de acumulações explicativas e sistemáticas,
confunde o domínio das forças da natureza
com a erudição livresca, em vez de localizá-la
no aprendizado intuitivo que nos é fornecido
pelas experiências da vida, dentre as quais a
sexualidade é, com certeza, uma das mais significativas.
Talvez
por isso Cervantes encerra a tertúlia intelectual
mediante a aparição da sexualidade animal,
representada pelo pastor Eugênio e sua cabra.
Ambos surgem em cena em função da inquietude
do animal que fugia do seu dono, só estancando
quando se deparou com o grupo que escoltava Dom Quixote.
A fala do cabreiro para seu animal é elucidativa
da eclosão da sexualidade, abstraindo-se o viés
machista aí implícito: – Ah! Serrana,
serrana; malhada, malhada; porque foges tu? Que lobos
te espantam, filha? Não me dirás que é
isto, linda? Mas que pode ser, senão que és
fêmea, e não podes estar sossegada? Volta,
volta, amiga, que, se não estiveres tão
satisfeita, pelo menos estará segura no teu aprisco
ou com as tuas companheiras, que se tu, que as há
de guiar e encaminhar andas tão desencaminhada
e tão sem juízo, onde pararão elas?
A
irrupção dessa energia procriativa das
entranhas do vale bucólico onde se encontravam
ressoou também no próprio Cônego,
só que agora depurada da distorção
preconceituosa: Sossegai um pouco irmão, disse
ele ao cabreiro, e não vos azafameis a fazer
voltar tão depressa a cabra para o rebanho que,
se ela é fêmea, como dizeis, há
de seguir o seu natural instinto, por muito que vos
ponhais a estorvá-la.
Considerando-se
que o cabreiro conta a seguir a sua história,
que se resume a uma desilusão amorosa em função
de sua amada ter sido enganada por um sedutor interessado
mais em seu dinheiro do que em sua sexualidade, torna-se
patente que ele e sua cabra representam a "sabedoria
instintiva natural" com a qual Sancho está
identificado. A comprovação disto nos
é dada, dentre múltiplos exemplos, pela
fala onde o escudeiro destaca a importância da
libido oral: [...] vou com esta empada para a beira
daquele regato, onde tenciono fartar-me por três
dias, porque tenho ouvido dizer ao meu senhor Dom Quixote,
que um escudeiro de Cavaleiro Andante deve comer quando
se lhe oferecer ocasião, até não
poder mais, porque às vezes, tem de se meter
por uma relva tão intrincada, que não
podem sair dela nem em seis dias, e se um homem não
vai farto, ou de alforges bem fornecidos, ali poderá
ficar, como muitas vezes fica, mudado em esqueleto;
já a importância da libido genital está
implícita na primeira indagação
que sua esposa Teresa Pança lhe faz após
sua longa ausência: Louvado seja Deus –
redargüiu ela – que tanto bem me tem feito;
mas conta-me agora, que lucrastes com as tuas escuderices?
Que saiote me trazes?
Dom
Quixote, por seu turno, ao retornar para casa depara-se
tão somente com duas figuras femininas sexualmente
neutras, a sobrinha e a ama, que o acolheram com cuidados
maternais, despindo-o e colocando-o na cama.
II,
pg. 105. Tomé Cecial: – Temos de certo,
senhor Sansão Carrasco, o que merecemos; com
facilidade se pensa e se acomete uma empresa, mas com
dificuldade se sai a gente dela, pela maior parte das
vezes. Dom Quixote é doido e nós somos
ajuizados; ele vai-se rindo, são e salvo; Vossa
Mercê fica moído e triste. Saibamos pois
agora, quem é mais doido; quem o é porque
se não conhece, ou quem o é por sua vontade?
–
A diferença que há entre estes dois doidos,
respondeu Carrasco, é que o doido a valer há
de sê-lo sempre, e, o que o é por vontade
deixará de o ser logo que o queira.
–
Perfeitamente, respondeu Tomé Cecial, eu fui
doido por vontade, quando me quis fazer escudeiro de
Vossa Mercê; pois agora, por vontade também,
quero deixar de o ser, e voltar para a minha casa.
A
temática da loucura verdadeira e da loucura fingida
é parte essencial e fundante da narrativa cervantina
no Quixote. Tomé Cecial, que se mancomunara com
o bacharel Sansão Carrasco para forjar um falso
combate com Dom Quixote, arrepende-se da empreitada
já que o tiro saíra pela culatra, seu
pseudo-amo levara uma surra e ele, cônscio de
suas prerrogativas de falso-doido, reivindicava o seu
direito de recuperar a lucidez e abandonar a farsa infeliz.
II,
pg. 136: Confrontada nossa dupla com o malfadado amor
de Basílio por Quitéria, abortado pela
interferência do pai da noiva que a preferiu casá-la
com o abonado Camacho, expressa Sancho a sua opinião:
Eu não desejava senão que o bom desse
Basílio, a quem já vou me afeiçoando,
casasse com a senhora Quitéria, e má peste
mate os que estorvam que se casem os que se querem bem.
A
este comentário singelo de Sancho, Dom Quixote
contrapôs sua rígida opinião eivada
de moralismo:
-
Se casassem todos os que se querem, tirava-se aos pais
a escolha e a jurisdição de casarem os
seus filhos com quem devem e quando querem, e se ficasse
à vontade das filhas escolher os maridos, haveria
tal que escolheria o criado do pai, e outra o que viu
passar na rua, no seu entender bizarro e jeitoso mancebo,
ainda que fosse um espadachim valdevinos; que o amor
e a afeição facilmente cegam os olhos
do entendimento, tão necessários para
escolher estado; e no matrimônio é muito
perigoso o erro, e é mister grande tento e particular
favor do céu para acertar.
E,
diante do temor de que o amante preterido pudesse se
entregar à morte quando a noiva "proferisse
o sim fatal", ponderou Sancho com sabedoria:
Deus
o fará melhor, quem dá o mal dá
o remédio; ninguém sabe o que está
por vir; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo;
a gente deita-se são e acorda doente; e digam-me
se há porventura quem se gabe do ter travado
a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher
não me atrevia eu a meter uma ponta de alfinete,
porque não caberia; queria Quitéria de
coração e deveras a Basílio, e
pode este contar com um saco de ventura, que o amor,
pelo que tenho ouvido dizer, vela de tal maneira que
o cobre lhe parece ouro.
Dom
Quixote, ao que tudo indica, sentiu-se ameaçado
com a lucidez de Sancho: Aonde vais parar Sancho, amaldiçoado
sejas, que em tu começando a enfiar provérbios
e contos, só te pode apanhar o diabo que te leve!
Dize-me animal, que sabes tu de rodas, de alfinetes,
nem de coisa nenhuma?
–
Pois se me não entendeu – respondeu Sancho
– não me admira que minhas sentenças
sejam lidas como disparates; mas, não me importa,
eu cá me entendo, e sei que não disse
asneira; mas Vossa Mercê, senhor meu, é
sempre "friscal" dos meus ditos e das minhas
ações.
Apesar
do ranço moralista, é sábia a ponderação
de Dom Quixote de que "o amor e a afeição
facilmente cegam os olhos do entendimento". A sabedoria
do amo parece contagiar o escudeiro que nos brinda com
uma réplica que desvela o outro lado da moeda,
ou seja, que o amor também funciona como lubrificante
da roda da fortuna, contribuindo desse modo para corrigir
os desvios do destino. Sancho aventura-se, inclusive,
a expressar seu bom senso metafísico, ao mencionar
sua fé numa divindade justa que "dá
o mal, mas também dá o remédio".
Por estar impregnado das angústias terrenas,
Sancho admite a sua insignificância diante de
Deus-Todo-Poderoso, enquanto Dom Quixote, imaginando-se
portador de um status sobrenatural, confunde-se constantemente
com o poder divino "fiscalizador" da precariedade
humana.
II,
pg. 271 – Carta de Sancho Pança a Teresa
Pança, sua mulher: [...] A duquesa, minha senhora,
beija-te mil vezes as mãos; retroca-lhe com duas
mil, que não há coisa que saia mais barata,
segundo diz meu amo, do que os bons comedimentos.
O
sistema fantasioso de Dom Quixote assemelha-se a um
país cercado por fronteiras rígidas que
só permite o acesso a seu interior mediante a
apresentação de um passaporte diplomático
que ateste a crença de seu portador na existência
da Cavalaria Andante. No entanto, uma vez ultrapassada
esta alfândega ideológica, adentra-se a
um universo altamente organizado onde o viajante tem
muito a aprender em termos de história, política,
religião, e mesmo a respeito das coisas triviais
que proliferam na vida cotidiana. Em momentos como estes,
Dom Quixote trata a Sancho como a um filho dileto com
quem compartilhamos fórmulas eficazes de convívio
social, como este singelo lembrete de que "não
há coisa que saia mais barata do que os bons
comedimentos".
II,
pg. 393: Tendo abandonado a governança da "ilha"
e tomando seu caminho de volta à sua vida regular,
encontra-se Sancho com um antigo vizinho, um tal de
Ricote, mouro foragido que voltara disfarçado
à Espanha para resgatar um tesouro que escondera.
Esse inesperado personagem oferece a Sancho uma parte
de seu tesouro, caso ele se disponha a ajudá-lo
na empreitada mas, escaldado por sua frustrada ambição
de alçar-se a uma condição que
não era a sua, ele recusa, dizendo: [...] Ricote,
segue o teu caminho em boa hora e deixa-me seguir o
meu, que bem sei que o que bem se ganhou, perde-se facilmente;
mas o que mal se ganhou, perde-se ele e perde-se a gente.
II,
pg. 400: Sancho, ao ser salvo da cova por Dom Quixote
e reencontrando os duques: Saí, como digo, da
ilha, sem mais acompanhamento que o do meu ruço;
caí numa cova, vim por ela adiante até
que esta manhã, com a luz do sol vi a saída
mas tão difícil que, a não me deparar
o céu o senhor Dom Quixote, ali ficaria até
ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa meus
senhores, aqui está o vosso governador Sancho
Pança que nestes dez dias de governo, só
lucrou o ficar sabendo que não serve de nada
ser governador de uma ilha, nem governador do mundo
inteiro. E com isto os não enfado mais e, beijando
os pés a Vossas Mercês, dou um pulo do
governo abaixo, e passo para o serviço do meu
amo Dom Quixote que, enfim com ele, ainda que coma o
pão com sobressalto, ao menos sempre me farto;
e eu cá, em me fartando, pouco me importo que
seja com feijões com que seja com perdizes.
A
frustrada experiência de "ser Rei por dez
dias" funcionou para Sancho como um choque de realidade,
convencendo-o, facilmente, que os seus recursos pessoais
eram insuficientes para sustentar a ambição
de ser rico e poderoso. Esta lição foi
incorporada por ele com tal solidez que, tendo o destino
promovido o seu reencontro com este Ricote que novamente
lhe ofereceu um ganho fácil, ele recusa de modo
peremptório, oferecendo como argumentação
que "o que mal se ganhou", ou seja, o ganho
corrompido, é fonte de envenenamento para o próprio
eu.
Esta
sábia ponderação, fruto do aprendizado
emocional recém-adquirido, prepara no fundo o
retorno do filho pródigo o qual, estando mergulhado
na escuridão do arrependimento, "vê
a luz do sol", ou seja, a presença salvadora
do pai-patrão Dom Quixote que veio ao seu encontro
para recebê-lo de volta. Ao retornar, no entanto,
Sancho traz consigo a fórmula redentora de como
o ser humano pode aprender a modificar suas frustrações,
garantindo assim a sua permanência no reino da
realidade. Talvez esse tenha sido o fator crucial na
recuperação da lucidez por parte de Dom
Quixote, o qual, estando no leito de morte ditando seu
testamento, readquiriu a identidade prosaica de Alonso
Quijano, o Bom, a distribuir com bondade os seus bens
entre aqueles que o amaram com lealdade, a começar,
naturalmente com seu querido Sancho Pança.

Don
Quixote (2000) - Don Quixote de La Mancha/Alonso Quixano
_____________________________________
Cervantes
A
história da Espanha dos últimos anos da
vida de Cervantes é a história da decadência
do Século de Ouro de Carlos V e Filipe II: a
experiência dos oitenta gloriosos anos que marcaram
a era do império no qual o sol nunca se põe,
Quadro: "Lendo Picasso, lendo D. Quixote"em
alusão às possessões de um extremo
ao outro do mundo ao tempo de Filipe II. A União
Ibérica — 1580-1640 — legou aos espanhóis
importantes possessões portuguesas como o Brasil
e regiões da Índia e da África.
Sem falar na conquista espanhola das Filipinas, nome
dado em homenagem ao rei Filipe II. O livro foi concebido
nos anos de transição dos reinados de
Filipe II e Filipe III. O momento de elaboração
da obra é o da acentuação aguda
da crise econômica do império Habsburgo,
em seu ramo espanhol. O fim do século XVI e o
início do XVII foram marcados por duas bancarrotas
da monarquia — 1596 e 1607 —, sem falar
na peste que dizimou um terço da população
no mesmo período. Entre os anos de 1606 e 1610
a competição de ingleses e holandeses
fez com que as transações comerciais da
Espanha com suas possessões na América
declinassem em aproximadamente 60 por cento.[1] Aliás,
a crise econômica espanhola refletiu duramente
sobre Cervantes, que viveu pobremente os seus últimos
anos.
No
tempo de Cervantes, um homem poderia revelar o seu valor
notabilizando-se pelo exercício das armas ou
das letras. Cervantes, exemplo de mentalidade moderna
— haja vista que o Dom Quixote serviu-lhe como
instrumento de combate ao obscurantismo da cultura medieval
—, constrói freqüentes paralelos entre
esses honrosos ofícios. Ao contrário de
Montaigne — que escreveu seus Ensaios a título
de modestas reflexões dedicadas a um círculo
restrito de amigos — Cervantes é o exemplo
do indivíduo cioso da própria genialidade,
e em busca apaixonada pelo sucesso na república
das letras. Na batalha naval de Lepanto contra os turcos
otomanos (1571), na qual combateu “mui valientemente”
e teve a mão esquerda despedaçada por
um tiro de arcabuz, conquistou as glórias das
armas e o apelido “El Manco de Lepanto”.
Cervantes se orgulhava de sua bravura nessa batalha.
No Prólogo da Segunda Parte do Quixote ele se
irrita com as indignidades de Alonso Fernández
de Avellaneda, o autor do falso Dom Quixote, publicado
em 1614, que o chamara de velho e manco, “como
se tivesse na minha mão demorar o tempo, que
parasse para mim, ou como se tivesse saído manco
de alguma rixa de taberna, e não do mais nobre
feito que viram os séculos passados e presentes,
e esperam ver os vindouros”, atroa Cervantes.
As suas feridas ganhas na “prodigiosa peleja”,
tal a magnitude que assume Lepanto aos olhos de toda
a Europa — a batalha que salvou a Cristandade
— são motivo da mais elevada honra.
As
armas implicavam a exibição de virtudes
como a coragem e a força. Havia ainda uma sutileza
a mais na definição das armas como um
ofício dignificante. Ora, num tempo de guerras
recorrentes que estavam definindo a nova geografia política
da Europa Moderna — os Estados territoriais emergentes
—, o que poderia existir de mais elevado do que
contribuir para a maior grandeza e glória do
reino? A vida aventurosa nos tempos de Cervantes, em
si mesma, era uma oportunidade desejada por jovens fidalgos.
Em síntese, o ofício das armas era o terreno
próprio às proezas pessoais que distinguiam
e notabilizavam até mesmo um simples particular
sem maiores predicados e recomendações,
caso do próprio Cervantes. Uma façanha,
um ato de heroísmo, e eis que se estava bem arranjado
na vida, reconhecido e premiado. Em defesa de seu reino
e de sua fé — no caso dos enfrentamentos
com o Islã em franca expansão pelo Leste
da Europa — nem as maiores vicissitudes das campanhas
— a morte, a fome, a peste, a prisão e
o exílio — seriam fontes suficientes de
desencorajamento de um herói em potencial. Sem
dúvida, o guerreiro deveria saber que não
há triunfo sem sacrifício. Ainda que ocorra
ao soldado cair em combate pela causa de seu príncipe,
é sempre belo morrer de armas na mão.
Eis o adágio de Virgílio, que Cervantes
tomou como sua divisa. Doente no porão de um
navio em Lepanto ele fez questão de subir à
proa para tomar parte nos combates.
Apesar
do heroísmo na vida real, as batalhas de Cervantes
não haveriam de lhe render os frutos esperados
na corte de El Rei. De retorno à Espanha, após
quatro anos de permanência na Itália, foi
aprisionado por piratas turcos no norte da África
por cinco anos e meio. Soldado sem glórias militares
reconhecidas e escritor frustrado, Cervantes tornou-se
um eficiente arrecadador de abastecimentos e cobrador
de impostos da monarquia espanhola, no tempo em que
Filipe II preparava a expedição da Invencível
Armada, para a invasão da Inglaterra e, inclusive,
depois disso. No Quixote há claras referências
a essas experiências de vida. Ao aludir ao métier
de cobrador de contribuições, o autor
esclarece tratar-se de coisas muito perigosas tais encargos,
“ofícios que em se usando mal deles leva
o Diabo quem os usa”. Sem dúvida, nota-se
aqui o registro das suas prisões como suspeito
de malversação dos recursos da monarquia,
pelas quais foi encarcerado mais de uma vez. Por essas
e por muitas outras notas da mesma natureza vemos o
quanto é auto-referente a imaginação
ficcional de Cervantes.
Como
as armas não lhe abriram o caminho que esperava,
o criador de Dom Quixote tencionou tornar-se escritor
reputado, no que, aliás, teve escasso sucesso,
ao menos na Espanha. Em seu livro fica estampada esta
intenção autoral ao declarar que “Uma
das coisas que maior contentamento deve dar a um homem
virtuoso e eminente é o ver-se andar em vida
pelas bocas do mundo, impresso e com estampa com bom
nome, é claro, porque, sendo ao contrário,
não há morte que se lhe iguale”.
E muitas mais são as suas confissões e
queixas contra a falta de reconhecimento seja no leito
ficcional da obra seja nos prólogos das duas
diferentes e desiguais partes do livro, como quando
reflete que, algumas pessoas, antes do tempo e contra
a lei das suposições razoáveis,
vêem os seus desejos premiados. Já outros,
sem dúvida de maior mérito, “importunam,
apoquentam, suplicam, madrugam, rogam, porfiam, a não
alcançam o que pretendem, e chega outro, e, sem
saber como, nem como não, acha-se com o cargo
e o ofício que muitos pretenderam”. E Cervantes
conclui, em outra parte, que o que vale neste mundo
é o se ter proteção pois aquele
que possui influência, “quando mal se precata,
acha-se com uma vara de juiz na mão, ou de mitra
na cabeça”. Nem a vara nem a mitra lhe
vieram, apesar de sua notável capacidade de deitar
louvores às virtudes das pessoas influentes como,
por exemplo, o Conde de Lemos, de cuja corte literária
imaginou fazer parte, quando da nomeação
deste aristocrata para Vice-Rei de Nápoles, em
1610. As suas expectativas foram frustradas, o que não
lhe impediu de, alguns anos mais tarde, lançar
ao aristocrata incenso como aquele que se lê na
Dedicatória da Segunda Parte, de 1615: “Venha
Vossa Excelência com a saúde com que é
desejado, que já cá estará Persiles
para lhe beijar as mãos, e eu os pés,
como criado que sou de Vossa Excelência”.
Nada havia de estranho em se dedicar obras a um patrono,
tanto que a Primeira Parte do Quixote fora dedicada
ao Duque de Béjar, que a ignorou. Mas, no caso
da Dedicatória ao Conde de Lemos, a ênfase
parece ter sido um pouco vigorosa, ainda que se pese
a cortesia peculiar de seu tempo.
Acerca
da estrutura da obra é preciso dizer que são
desiguais principalmente porque, na Segunda Parte —
composta por 72 capítulos contra os 52 da anterior
—, as peripécias de Sancho Pança
ganham tal volume a ponto de comprometer a densidade
do personagem central. Isso acarreta uma considerável
redução das aventuras quixotescas. Quando
do governo de Sancho Pança em sua ilha imaginária,
e que ocupa um volume considerável de texto,
Dom Quixote é praticamente deixado em quarentena.
Mas não deixa de ser muitíssimo divertida
a estratégia do autor em dar azo às ambições
e ao materialismo do indolente escudeiro, mesmo que
em detrimento das fantasias de Dom Quixote. Naturalmente,
existem opiniões divergentes. Alguns autores
consideram a segunda parte o ponto alto da obra: é
mais complexa, melhor elaborada, desenvolve interpretações
filosóficas e morais dos episódios narrados.
É que Cervantes, movido pelo sucesso internacional
da obra, passou a se interessar mais por sua criação,
dotando-a de uma nova complexidade filosófica
e estética.
Acerca
do fraco reconhecimento que a Espanha conferiu ao autor
em vida, digna de nota é a passagem deixada por
Márquez Torres, censor da segunda parte do Quixote,
publicada em 1615. Conta ele, na Sentença de
Aprovação — pois os livros naquela
época eram censurados pela Igreja —, que
em visita à Espanha, embaixadores franceses pasmaram-se
em saber da ingrata sorte do criador do Quixote, cuja
primeira parte circulara pela Europa desde 1605. Pobre
e esquecido, e já no final da vida, Cervantes
ainda escrevia para ganhar o pão. Que reino era
a Espanha que permitia tal destino, indagou com uma
ponta de indignação um dos membros da
embaixada. No que foi respondido por um de seus colegas:
se a necessidade o obriga a escrever, Deus queira que
nunca seja próspero, para que faça o mundo
rico com suas obras.
O
Shakespeare da língua espanhola morreu em 23
de abril de 1616, o mesmo dia da morte do autor de Hamlet.
Como lembra a esse respeito o crítico norte-americano
Harold Bloom, “Contemporâneos perfeitos
(é possível que tenham morrido no mesmo
dia), Shakespeare, evidentemente, leu Dom Quixote, mas
é bastante improvável que Cervantes soubesse
da existência de Shakespeare.[3] De fato, paralelos
entre Cervantes e Shakespeare são recorrentes
na crítica literária. A genialidade de
ambos, e o fato de terem vivido numa mesma época,
são as fontes naturais desses paralelos. A estatura
colossal de Dom Quixote é normalmente comparada
à grandeza de Hamlet.
Cervantes
desenganado, triste, revoltado contra a sorte infeliz
e contra a fortuna ingrata, preso em virtude de não
sei que intriga reles em que o tinham injustamente culpado,
lembrou-se, para iludir as tristezas do cárcere,
de escrever um romance satírico contra as novelas
de cavalaria, cuja extravagância, cujo mau gosto,
cuja exageração grotesca tinham assumido
àquele tempo um grau intolerável.
Cervantes
julgava ter escrito belíssimas coisas –
dramas, comédias, romances, etc., hoje inteiramente
esquecidas; mas como tinha a soberba inconsciência
do génio, o qual, como a Natureza, nunca sabe
o que tem a referver, a germinar, a desabrochar, a crescer
nos seus seios ubérrimos, ele não percebeu
ao escrever o D. Quixote que fazia a sua obra única,
a sua obra imortal, aquela que lhe deu direito a entrar
na legião rara e luminosa dos nomes que não
se apagam mais nos céus da inteligência
humana; a obra que enriquecia o mundo com uma figura
muito mais real do que as miríades de criaturas
que até ali e dali em diante nasceriam e morreriam
nele; aquela que fez de Cervantes a alma mais querida
e mais luminosa da terra em que nasceu e que tão
hostil e tão desamorável foi à
sua forma mortal!… Hoje o centenário de
Cervantes ilumina de alto esplendor essa Espanha onde
ele teve fome e sofreu perseguições e
inclemências!
Cervantes,
ao pegar na pena para escrever esse extraordinário
panfleto contra a literatura ridícula e falsa
dos seus contemporâneos, ignorava absolutamente
a coisa enorme, a coisa genial que ia fazer! Sem dar
por isso, ele ressuscitava em si o ideal extinto da
antiga pátria de Cid e metia-o da maneira mais
original e mais profundamente cómica na alma
do seu magro cavaleiro, criando assim um anacronismo,
vivo. Fazia dele um verdadeiro herói sem meio
adequado a mover-se. E no seu livro, cheio de vida e
cheio de intensa objectividade, introduzia a pouco e
pouco – pelo processo que o amplia e o torna numa
espécie de espelho do mundo, – não
só tudo que sabia pelas leituras feitas com avidez
durante a sua vida errante, como também tudo
que conhecia directamente pela observação
que em certas naturezas privilegiadas é fecunda
como a própria criação, e tudo
que sofrera de desilusões e desenganos e tudo
que imaginara, com aquela extraordinária e pujante
fantasia que faz dele uma espécie de semideus!

Miguel
de Cervantes
SOLDADO
E ESCRITOR
1547
Nasce Miguel de Cervantes Saavedra
1551
O pai, Rodrigo, é preso por causa de dívidas
1566
A família instala-se em Madri
1569
Após incidente no qual teria ferido um homem,
deixa Madri e vai morar em Roma
1571
Participa da batalha de Lepanto, contra os turcos. Ferido
em combate, tem a mão esquerda inutilizada
1575
Capturado por corsários, é levado para
Argel, com seu irmão Rodrigo, onde fica cinco
anos em cativeiro
1581
Vai para Lisboa, onde escreve peças de teatro
1584
De um romance com Ana Franca, nasce Isabel de Saavedra.
Casa-se com Catalina de Palacios Salazar
1585
Publica La galatea. Morte do pai
1587
É nomeado comissário real encarregado
de recolher azeite e trigo para a Armada Invencível
1593
Morte da mãe. Publicação do romance
La casa de los celos
1597
É preso em Sevilha, após ser condenado
a pagar dívida exorbitante
1598
Deixa a prisão. Morte de Ana Franca
1605
É publicada a primeira parte de Dom Quixote
1613
Ingressa na Ordem Terceira de São Francisco.
Publicação de Novelas exemplares
1614
Surge uma continuação de Dom Quixote,
escrita por Avellaneda
1615
Cervantes publica a segunda parte de Dom Quixote
1616
Morre em Madri, no dia 22 de abril
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Fontes
: CARVALHO, Maria Amália Vaz de, 1847-1921
D. Quixote : (a collaboração de três
séculos na obra de Cervantes)
In : Ao correr do tempo / Maria Amalia Vaz de Carvalho
. – Lisboa : Parceria António Maria Pereira,
1906. - p. 183-194
BN L. 11548 P.
Wikipedia;
pOr trÁs dAs LeTraS ::
Marco
Antônio Lopes, Docente do Depto. de Ciências
Sociais da UEL.
Luiz
Carlos Uchôa Junqueira Filho, membro
efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise
de São Paulo, filiada à International
Psychoanalytical Association.
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